quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

DIREITO DE IR PARA O INFERNO


DIREITO DE IR PARA O INFERNO - Moysés Pinto Neto

Moysés Pinto Neto é pesquisador trandisciplinar da violência. Doutorando em Filosofia (PUCRS). Professor da ULBRA.

A cada dia que passa emerge mais forte e reativamente o fundamentalismo cristão como forma de contestação do avanço dos movimentos que transgridem suas regras morais. Evidente que esse fundamentalismo não é apenas um fenômeno contemporâneo. Na realidade, ele não precisava gritar antigamente simplesmente porque não era necessário. Bastava desviar seus olhos para o alvo para que imediatamente suas impiedosas sanções caíssem sobre as vítimas. Tempos que arrastam uma violência silenciosa que substitui a antiga queima de hereges e bruxas.
Os cristãos fundamentalistas reivindicam a volta dos “valores da família” (que é na realidade a família patriarcal, heterossexual, puritana e repressora), os crucifixos nas salas de audiência, lutam contra direitos de gays e mulheres, vociferam contra as diferenças em nome de uma interpretação boçal da Bíblia e da suposta “natureza”. No fundo, desejam apenas manter a mais pura violência que é o preconceito. Ao contrário do que põe Gadamer, o preconceito não é apenas uma pré-compreensão que antecede necessariamente a compreensão do mundo numa espiral hermenêutica, mas uma ação entre os viventes cuja visão esteoreotipada de um sobre o outro – independente do seu erro – produz efeitos de poder e violência. O que interessa no preconceito não é o caráter cognitivo, mas os efeitos que produz sobre a respectiva vítima.
Por essa razão, não pode haver “direito ao preconceito”, pois o preconceito não é apenas uma posição cognitiva cuja salvaguarda estaria protegida tal como a liberdade de pensamento, mas uma ação violenta que cai sobre o outro, um fazer que hierarquiza, petrifica, estigmatiza. Legitimar o preconceito é legitimar a violência. Se cognitivamente talvez seja inexorável o estereótipo como referencial mínimo de orientação, o problema é precisamente a sedimentação que os fundamentalistas e os “politicamente incorretos” defendem. Pois o problema do preconceito não foi criado por quem busca o desconstruir, mas por aqueles que o inventaram e hoje lutam para que seja mantido.
Os cristãos fundamentalistas retrucariam que se trata, no final das contas, de liberdade religiosa. Ora, nesse caso a própria estrutura religiosa do cristianismo nos dá a resposta: se é um dogma fundamental o livre-arbítrio, é preciso preservá-lo justamente contra a heresia de obrigar alguém a cumprir mandamentos religiosos. A sanção que a religião cristã propõe é a mais severa possível para aqueles que descumprem suas regras: o sofrimento eterno e indizível do inferno. Nesse caso, devemos deixar que os hereges sofram tais sanções, sem que os obriguemos a agir de forma diferentes. O religioso não deve atacar o não-religioso por meio de sanções do Estado, pondo em dúvida a própria efetividade das suas crenças no julgamento divino. Deus tratará de fazer a justiça que o Estado não deve fazer. Exatamente por isso deveríamos lutar até o fim por um direito contra todo e qualquer transbordamento de dogmas religiosos para a política: o direito de ir para o inferno.

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